Apostila: Oficina de Culinária A Cozinha dos Quilombos de Campos dos Goytacazes: Sabores, Territórios e Memórias

XIII  Semana Nacional de Ciência e Tecnologia
"Mostra de Extensão e Pós-Graduação" 

“Ciência Alimentando o Brasil”


Oficina de Culinária
A Cozinha dos Quilombos de Campos dos Goytacazes:
Sabores, Territórios e Memórias


 

   
Proposta: Conhecer aspectos históricos e culturais da alimentação no Brasil; reconhecer os hábitos alimentares como um fator importante da identidade cultural do nosso povo; conhecer alguns pratos, utensílios e modos de preparo da cozinha brasileira; reconhecer a herança dos negros e negras na cozinha brasileira de hoje, em especial as preparações da alimentação cotidiana dos remanescentes quilombolas de Campos dos Goytacazes.

Fabiano Nascimento Seixas


 Hélvio Gomes Cordeiro


 Alimentação e a Questão Social

"Os hábitos alimentares constituem-se em experiências consolidadas através do tempo e por isso se transformam em simbolismos e representações culturais. A comensalidade encontra o auge de expressão durante as refeições. Através da alimentação, é possível visualizar e sentir tradições que não são ditas. A alimentação é também memória, opera muito fortemente no imaginário de cada um, e está associada aos sentidos: odor, visão, paladar, audição e tato.
Destaca-se as semelhanças, as diferenças, as crenças e a classe social a que cada uma pertence, por trazer consigo as raízes de cada cultura.
A constituição do que é reconhecido pelos grupos sociais como sua culinária, ou gastronomia regional, vem de um processo histórico-cultural que vai, ao longo dos anos, se consolidando e se estruturando através da articulação de inúmeros elementos que, por vezes, fogem da análise formal, uma vez que estão vinculados ao valor simbólico atribuído aos elementos que constituem os pratos locais e regionais.
Patrimônio cultural são obras de arte no espaço, ou seja, a pintura, a escultura e a arquitetura. Mas existem outras artes, aquelas que transcorrem no tempo, como a dança, a literatura (o teatro incluído) e música. Também são parte do patrimônio cultural artístico, mas, por não terem a mesma materialidade que os anteriores, é complexa sua qualificação como “bens”, donde sua quase permanente exclusão das preocupações oficiais com a questão do patrimônio. Por outro lado, os seres humanos não produzem apenas obras de artes, produz ciência, sabedoria, máquinas, remédios, história, vestuário, receitas de cozinha, formas de relacionar-se com os vizinhos, enfim, hábitos, usos e costumes, entre os quais, lamentavelmente, também estão formas de violência e destruição. 
(BARRETO, 2000, p. 10)
"Assim, como afirma Barreto (2000), a alimentação também é compreendida como patrimônio cultural dos povos e traz elementos materiais na sua produção, manipulação e transformação da matéria-prima em alimento, embora seus significados estejam, principalmente, vinculados à questão imaterial, uma vez que são nos simbolismos de uma refeição que estão seus significados culturais e representações sociais.
Dessa forma e segundo Cascudo (2004), criam-se os elementos da cultura alimentar dos povos que também é compreendida como algo que não se cristaliza no tempo, entendendo que os sabores vão se modificando ao longo das gerações.
A gastronomia faz parte da cultura de todos os povos e o resgate da cozinha tradicional valoriza a culinária. Nesse âmbito, a atividade turística faz uso desse patrimônio, que, muitas vezes, através da gastronomia, percebe o valor cultural de um determinado local. "


A comida, o alimento é combustível de vida, uma luta permanente pela sobrevivência.

(...) dividimos o pão, o alimento com pessoas singulares em territórios que jamais sonhamos existir, percebendo também nesse estado multifacetado, multicolorido de diversidade ainda se pode conhecer a tristeza do passado na memória do presente.

O que sonham essas famílias além da terra de direito?

Cidadania. Querem ser reconhecidos como cidadãos, ter seus direitos fundamentais reconhecidos. O sonho da liberdade ainda pulsa, uma liberdade sem paredes invisíveis, que dividem as camadas sociais do país.(...)

(...) É necessário que a história não morra, é necessário que os tambores ecoem os cantos vindos nos navios; é necessário dançar, é necessário o cantar, é necessário o reconhecimento, o pertencer, o tirar das amarras para que as vozes vindas da mãe África não se calem.

No fogão, a lenha aquece a água, a madeira trepida e a fumaça sobe levando consigo nosso olhar ate que desapareça no ar. Que seja esta a brasa que queimará  eternamente o calor da busca pelo reconhecimento de nossa brasilidade. Com os nossos pratos cheios de novas informações tentamos digerir todas as historias contadas e nos fartar com tanta esperança na fora da pele, na luta territorial, e, assim, declaramo-nos cidadãos brasileiros.
Marinez Teododo Fernandes, presidente do Instituto Dagaz.
Trecho da apresentação do Livro A Cozinha dos Quilombos: Sabores, territórios e memórias.



Quilombo Aleluia
Campos dos Goytacazes, Região Norte Fluminense
Do período anterior a abolição da escravatura ate os dias atuais, a região do Imbé, situada no município de Campos dos Goytacazes, tem sido palco de variados atores sociais: africanos escravizados, negros aquilombados, colonos cortadores de cana, assentados de reforma agrária, missionários evangélicos e remanescentes de quilombos. Em2005, as comunidades Aleluia, Batatal, Cambucá e Conceição do Imabé solicitaram a  Fundação Cultural Palmares o autorreconhecimento como quilombolas.
Nessa região do Imbé, no Norte Fluminense, no 9º Distrito de Campos dos Goytacazes, ao todo, vivem, aproximadamente, 170 famílias em um total de quase 750 habitantes. Em termos ecológicos, vale destacar que o território das comunidades está situado dentro do Parque Estadual do Desengano, Unidade de Proteção Ambiental que tem o ultimo remanescente florestal continuo da Mata Atlântica. Certamente, em um espaço tão densamente ocupado, há diversas praticas culinárias interessantes.
Luciana Delgado, de 39 anos, vive com a família na Comunidade de Aleluia, e começou a cozinhar aos doze anos de idade, quando se tornara responsável pela criação dos irmãos, em virtude da perda de sua mãe. Revisitando momentos difíceis e marcantes, Luciana fala sobre a alimentação na infância: 
- A gente passa tanto sufoco na vida, que tudo que vinha para gente era bom.
Para tanto, serviu-lhe como referencia a temporalidade da Usina:
- A gente vinha da Usina lá... Na época da Usina, a gente fazia compras lá, e tudo que tinha lá de novidade para criança, a gente gostava. Não é igual à hoje, que as crianças têm tudo. Hoje as crianças tem tudo a mao, iogurtes, né? Minhas meninas tem 15, 16, 17 anos, ainda compro iogurtes para elas, eu não tinha nada disso.
Em um passado vivido com dificuldades, os vegetais existentes no quintal precisam ser largamente aproveitados para sobrevivência. Entre eles, destaca-se o baiano, vegetal de coloração verde-escura, que, de acordo com os costumes e hábitos da região, era preparado puro ou acompanhado. O baiano, como reforça Luciana, tem muita vitamina.
Atualmente, as pessoas ainda consomem o vegetal, porem, hoje em dia, há mais dificuldades para encontrá-los, conforme a Luciana adverte:
- Olha, aqui {apontando para o quintal}, na época a gente tinha baiano.  Já... Eu não tinha tanta dificuldades{...} Porque, às vezes, é difícil; hoje, eu achei na casa da minha Irmã [...].
Luciana, com orgulho ter superado os momentos difíceis do passado, conclui:
- A gente gosta muito da nossa culinária. Tem gente que quer vir conhecer a área da gente, e a gente fica feliz. A gente tem para oferecer ao turista, um colega, um amigo [...], antigamente não tinha isso, era muita dificuldade. E a gente gosta disso ai, é... de ver a família toda unida. Natal a gente reúne todo mundo. E a comunidade, graças a Deus, todo mundo unido. Você vai fazer um programazinho ali, ta todo mundo conhecido ... e no mais, a gente vai vivendo a vida da gente.
          Do angu com baiano, preparado por Luciana, sai uma fumacinha que é um convite para experimentá-lo.

Angu com Baiano



Ingredientes

Molho:
200g de carne seca
20g bacon
3 tomates
Cebolinha verde
Salsinha
Cebola

Angu
Alho (1 cabeca)
1 colher de cebola
2 tabletes de caldo de carne
5 colheres de sopa de fubá
300g de baiano
Modo de Preparo
Ferventar a carne seca por uns 10 minutos para tirar o sal, escorrer a água e depois fritar com alho e cebola. Picar os ingredientes do molho e adicioná-los a carne seca para cozinhar.
Angu: colocar a água para ferver. Dissolver o fubá numa xícara com água fria, para depois acrescentá-lo na água fervente já acrescida do caldo de carne, do alho e da cebola. Mexer por 10 minutos, colocar o baiano e deixar cozinhar por 40 minutos.



Quilombo Cambucá
Campos Goytacazes, Região Norte Fluminense
Tudo que se faz carinho as pessoas vão sempre gostar...
Dona Dalmeci Honorato, de 48 anos, conhecida como Dalma, cozinha desde 11 anos de idade. Ela mora na gleba de Cambucá, onde residem quase 160 pessoas. Com a sabedoria daqueles que aprenderam a ler a vida por meio da observação, ela e o marido, Seu Paulo, abriram as portas da residência para mostrar algumas praticas culinárias que aprenderam.
O talento de Dona Dalma na cozinha tornou-se um diferencial, inclusive em sua profissão. Hoje, apesar de não trabalhar mais fora de casa. Dalma relembra o momento que sua habilidade se destacou:
- Até,no Rio de Janeiro, a minha patroa não comida à própria comida dentro da casa dela. Só que a Irma dela cozinhava, depois que eu passei a cozinhar é que ela passou a comer em casa, jantar e almoçar, ela, o esposo e o filho... E gostava muito, graças a Deus, da minha comida.
Igualmente ao milho, o mamão, disponível no terreiro de casa, aparece nas receitas, conforme Dona Dalmeci explica:
- É bem mais fácil, né? Porque o mamão, a gente já colhe ele, né? Já planta o mamão; dele, a gente tira aquele fruta e faz as receitas. Até mesmo ensopado de mamão a gente faz, faz o doce também do mamão maduro.
Além disso, ela confirma a necessidade de cultivar a terra como forma de manter as praticas culinárias:
- No momento, eu estou até terminando de limpar ali para fazer outra plantação, porque termina aquela colheita já tem que fazer outra plantação depois. Nem sempre, né, tem gente incentivando... Isso ai é uma coisa que a gente sempre tem na cozinha [...]
Nesse sentido, Seu Paulo Honorato, de 53 anos, reafirma a importância da permanência, dentro das comunidades, da cultura da farinha, da banana e do coco, haja vista que grande parte do que se come vem da terra. Como exemplo, destacam-se o cantão de banana, o biju, a tapioca e o polvilho. Por conseguinte, como liderança do quilombo, um de seus desejos também é retornar ao uso de ervas medicinais: erva doce, erva cidreira, hortelã, entre outras.
Com a habilidade de tornar melhor aquilo que toca com o olhar, Dona Dalma preparou as receitas de canjiquinha com carne ralada e de ensopadinho de mamão com carne seca, oferecendo cocada como sobremesa. Com efeito, ela diz:
- Tudo que se faz com carinho as pessoas sempre vão gostar.

Canjiquinha com Carne Ralada

Ingredientes
500g de canjiquinha
Alho
Cebola
Carne moída
Cebolinha
Tomate
Pimentão
Colorau
Colorau

Modo de preparo:
Preparar a carne moída com os ingredientes, começando pela cebola em pouco óleo, para dourar. Refogar a carne moída e depois os ingredientes (tomate, pimentão, colorau e por ultimo a cebolinha), deixando a carne mais sequinha, sem muito caldo. Refogar a canjiquinha com alho, cebola e cozinhar, adicionando água, de 10 a 20 minutos. Em um tabuleiro, fazer camadas da canjiquinha e da carne moída.
Cozinheira: Dalmeci Martins Xavier Honorato.
  

Quilombo do Batatal

Campos dos Goytacazes, Região Fluminense

A gente tinha a comida vinda da lavoura...

Na cozinha do pólo da Fundação Municipal Zumbi dos Palmares, destinado as comunidades do Imabé, Dona Berenice, de 54 anos, mas conhecida como Bidi, preparou a receita do ensopado de carne de porco com inhame e falou a respeito de suas experiências, como referencia temporal de partida, Dona Bidi utilizou o período da constituição do Assentamento Novo Horizonte: Ai, eu passei uma vida assim muito sacrificada. Meu esposo foi operado de coluna, tudo o que fazia não dava, né? Mas, ai, eu gostava de usar as coisas que eram mais fáceis para mim, Eu procurava pescar, fazer um ensopadinho de banana, um peixinho frito, ensopadinho de inhame rosa pra comer com aqueles peixinhos maiores [...] Minha comida era essa na época que passei a crise. Na época que eu vim para a reforma agrária [Assentamento Novo Horizonte], eu comia arroz de novo, que eu plantei com meu esposo, a gente colheu...
            Sobre os ingredientes utilizados na receita do ensopado de carne de porco com inhame, Dona Berenice explica:
- Bom, a historia que eu tenho é a seguinte... É que na época, a minha mãe e meu pai gostavam muito da lavoura, faziam muita lavoura, e ele tinha muita quantidade de inhame plantada, né? Não tinha escolha, qualquer tipo de inhame plantada, né? Não tinha escolha, qualquer tipo de inhame ele plantava na terra, como a gente fazia lavoura, não era difícil criar um porco [...] Era tudo fácil, porque aquelas coisas que a gente plantava serviam pra. Era tudo fácil, porque aquelas coisas que a gente plantava serviam pra alimentar a gente e servia também pra tratar os porcos. Ai, a gente tinha a comida vinda da lavoura e tinha a carne que era do porco. Ai, era mas fácil para nós. Então, minha mãe gostava sempre de fazer ensopadinho, ela [a carne de porco] fritinha, assadinha no forno de lenha, tudo isso.

Ensopado de carne de Porco com Inhame

Ingredientes

2 kg de costelinha fresca
2 cebolas
2 cabeças de alho
2,5kg de inhame
Alho a gosto
Alfavaca a gosto
Modo de preparo

O lombo deve ficar de molho durante 15 minutes na água com vinagre. Escorrer a água e cozinhar por 15 a 20 minutos na panela ate dourar, fritar na cebola e nos alhos picados. Cozinhar o inhame na panela de pressão por 15 minutos, ou ate desmanchar, e adicionar a carne.

Quilombo Conceição do Imbé
Campos dos Goytacazes, Região Fluminense

Vem de geração em geração
A culinária é uma arte que precisa ser realizada com jubilo! Essa dica infalível da mãe da minha filha, Vanilda, com 57 anos, e Verônica, com 37 anos, expressam quando constroem novos sentidos para alimentos que, no passado, eram consumidos pelas pessoas da comunidade do Imbé.
Assim, de uma época em que nem sempre a realidade era festiva, trazem a tona recordações de algumas receitas, como, por exemplo, pelanca de velho, bolinho de farinha, água e sal; cantão de banana. Sobre a primeiro prata, Verônica destaca: Meu filho gosta tanto de pelanca de velho que ele escondeu debaixo do colchão.
            Entretanto, no tange ao quesito ressignificacao, a banana é a grande estrela. Tomando as rédeas da narrativa em suas mãos, Verônica conta: A historia que eu lembro, que o pessoal conta [...] que quando a usina faliu  e pessoal ficou desempregado, a banana era o prato principal. Banana cozida de manha, porque ai fazia a paçoca. Pegava a banana, cozinhava, botava farinha e açúcar, era o café da manha [...] na hora do almoço, era o cantão, e, na janta, o cantão de novo, porque não tinha outra coisa.
            Por vezes, conforme Verônica fala risonhamente, conseguir a banana demandava alguns peripécias:  - No alto dessa serra, ali tem um lugar que tinha muita banana, só que lá o acesso lá é terrível, a estrada é esburacada mesmo. Pra você ir lá, só a cavalo. A minha tia foi, botou um de um lado e outro do outro e foi  buscar banana, porque as crianças estavam todas com fome, passando necessidade. Ela e uma outra tia minha. Só que as duas não eram magrinhas eram fortezinhas. Foram no cavalo. O cavalo não estava agüentando as duas mais, abria as pernas, tentava deitar, cansado, suado. E as duas em cima do cavalo porque a altura é muito grande. Quando chegaram lá, encheram o cesto de banana e desceram as duas do cavalo. Daí, o cavalo não agüentou não, abriu as pernas e teve que deitar, porque não agüentou o peso. Pior que o cavalo não era delas, era do campeiro, e era um cavalo de raça. E as duas trepadas no cavalo, quase matando o cavalo. Elas desceram, ficaram batendo no cavalo para ele levantar. Foi quando veio um rapaz e falou: Oh, vou dar uma catucada, porque se não levantar agora, não levanta mais! Ai cutucou o cavalo, que saiu da carreira e as duas saíram correndo atrás. Quase mataram o cavalo por causa de pegar banana pra fazer a comida. [riso]. Gente, que coisa triste isso ai, hein?... Ai, essa foi a historia das minhas tias.
            Alem disso, essa receita passa de geração para geração, conforme explica Dona Vanilda:  - Vem de geração em geração. Só que na época o pessoal comia por necessidade, hoje não. É um prato que todo mundo gosta. É totalmente diferente, hoje ninguém usa mais por necessidade, é porque gosta. Vê uma banana verde e faz o ensopado. Hoje, é totalmente diferente.

Cantão


Ingredientes
1 kg de carne seca
2 dúzias de banana nanica ou banana figo verde
Cebola a gosto
Alho a gosto
Cheiro verde a gosto
Modo de preparo
Dessalgar a carne seca fervendo-a cada fervura. Descascar a banana com faca, picar em cubos pequenos e colocar de molho  em água fria. Picar e socar a cebola junto com o alho, refogar em três colheres de sopa de óleo, deixar dourar e acrescentar a carne seca. Deixar cozinhar ate ficar bem macia. Reservar em outro recipiente.
Na panela que foi refogada e cozida a carne, cozinhar também a banana, cobrindo-a com o caldo dessa carne ate que a banana se desmanche. Deixar ferver e engrossar.
Servir com a carne e o arroz branco.

Referência:


A Cozinha dos Quilombos Sabores, territórios e memórias, Instituto Dagaz. Grafica Ediouro, Rio de Janeiro: 2015. 

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