Oficina de Culinária A Cozinha dos Quilombos de Campos dos Goytacazes: Sabores, Territórios e Memórias
Núcleo de Estudos Afro Brasileiros e Indígenas - Campus Campos Centro
Projeto Memórias da
Escravidão em Campos
Oficina de Culinária
A Cozinha dos Quilombos de Campos dos Goytacazes:
Sabores, Territórios e Memórias
Chefe Fabiano Seixas
seixas.fabiano@gmail.com
A comida, o alimento é combustível de vida, uma luta
permanente pela sobrevivência.
(...) dividimos o pão, o
alimento com pessoas singulares em territórios que jamais sonhamos existir,
percebendo também nesse estado multifacetado, multicolorido de diversidade
ainda se pode conhecer a tristeza do passado na memória do presente.
O que sonham essas famílias
além da terra de direito?
Cidadania. Querem ser
reconhecidos como cidadãos, ter seus direitos fundamentais reconhecidos. O
sonho da liberdade ainda pulsa, uma liberdade sem paredes invisíveis, que
dividem as camadas sociais do país.(...)
(...) É necessário que a
história não morra, é necessário que os tambores ecoem os cantos vindos nos
navios; é necessário dançar, é necessário o cantar, é necessário o
reconhecimento, o pertencer, o tirar das amarras para que as vozes vindas da
mãe África não se calem.
No fogão, a lenha aquece a
água, a madeira trepida e a fumaça sobe levando consigo nosso olhar ate que
desapareça no ar. Que seja esta a brasa que queimará eternamente o calor da busca pelo
reconhecimento de nossa brasilidade. Com os nossos pratos cheios de novas
informações tentamos digerir todas as historias contadas e nos fartar com tanta
esperança na fora da pele, na luta territorial, e, assim, declaramo-nos
cidadãos brasileiros.
Marinez
Teododo Fernandes, presidente do Instituto Dagaz.
Trecho
da apresentação do Livro A Cozinha dos Quilombos: Sabores, territórios e
memórias.
Quilombo Aleluia
Campos dos Goytacazes, Região Norte Fluminense
Do
período anterior a abolição da escravatura ate os dias atuais, a região do Imabé,
situada no município de Campos dos Goytacazes, tem sido palco de variados
atores sociais: africanos escravizados, negros aquilombados, colonos cortadores
de cana, assentados de reforma agrária, missionários evangélicos e
remanescentes de quilombos. Em2005, as comunidades Aleluia, Batatal, Cambucá e Conceição
do Imabé solicitaram a FUNDAÇÃO Cultural
Palmares o autorreconhecimento como quilombolas.
Nessa
região do Imbé, no Norte
Fluminense, no 9º Distrito de Campos dos Goytacazes, ao todo, vivem,
aproximadamente, 170 famílias em um total de quase 750 habitantes. Em termos
ecológicos, vale destacar que o território das comunidades está situado dentro
do Parque Estadual do Desengano, Unidade de Proteção Ambiental que tem o ultimo
remanescente florestal continuo da Mata Atlântica. Certamente, em um espaço tão
densamente ocupado, há diversas praticas culinárias interessantes.
Luciana
Delgado, de 39 anos, vive com a família na Comunidade de Aleluia, e começou a
cozinhar aos doze anos de idade, quando se tornara responsável pela criação dos
irmãos, em virtude da perda de sua mãe. Revisitando momentos difíceis e
marcantes, Luciana fala sobre a alimentação na infância:
- A gente passa tanto sufoco
na vida, que tudo que vinha para gente era bom.
Para
tanto, serviu-lhe como referencia a temporalidade da Usina:
- A gente vinha da Usina lá...
Na época da Usina, a gente fazia compras lá, e tudo que tinha lá de novidade
para criança, a gente gostava. Não é igual à hoje, que as crianças têm tudo.
Hoje as crianças tem tudo a mao, iogurtes, né? Minhas meninas tem 15, 16, 17
anos, ainda compro iogurtes para elas, eu não tinha nada disso.
Em
um passado vivido com dificuldades, os vegetais existentes no quintal precisam
ser largamente aproveitados para sobrevivência. Entre eles, destaca-se o
baiano, vegetal de coloração verde-escura, que, de acordo com os costumes e
hábitos da região, era preparado puro ou acompanhado. O baiano, como reforça
Luciana, tem muita vitamina.
Atualmente,
as pessoas ainda consomem o vegetal, porem, hoje em dia, há mais dificuldades
para encontrá-los, conforme a Luciana adverte:
- Olha, aqui {apontando para
o quintal}, na época a gente tinha baiano.
Já... Eu não tinha tanta dificuldades{...} Porque, às vezes, é difícil;
hoje, eu achei na casa da minha Irmã [...].
Luciana,
com orgulho ter superado os momentos difíceis do passado, conclui:
- A gente gosta muito da
nossa culinária. Tem gente que quer vir conhecer a área da gente, e a gente
fica feliz. A gente tem para oferecer ao turista, um colega, um amigo [...],
antigamente não tinha isso, era muita dificuldade. E a gente gosta disso ai, é...
de ver a família toda unida. Natal a gente reúne todo mundo. E a comunidade,
graças a Deus, todo mundo unido. Você vai fazer um programazinho ali, ta todo
mundo conhecido ... e no mais, a gente vai vivendo a vida da gente.
Do
angu com baiano, preparado por Luciana, sai uma fumacinha que é um convite para
experimentá-lo.
Angu com Baiano
Ingredientes
Molho:
200g de carne seca
20g bacon
3 tomates
Cebolinha verde
Salsinha
Cebola
Angu
Alho (1 cabeca)
1 colher de cebola
2 tabletes de caldo
de carne
5 colheres de sopa de
fubá
300g de baiano
Modo de Preparo
Ferventar
a carne seca por uns 10 minutos para tirar o sal, escorrer a água e depois
fritar com alho e cebola. Picar os ingredientes do molho e adicioná-los a carne
seca para cozinhar.
Angu:
colocar a água para ferver. Dissolver o fubá numa xícara com água fria, para
depois acrescentá-lo na água fervente já acrescida do caldo de carne, do alho e
da cebola. Mexer por 10 minutos, colocar o baiano e deixar cozinhar por 40
minutos.
Quilombo Cambucá
Campos Goytacazes, Região Norte Fluminense
Tudo
que se faz carinho as pessoas vão sempre gostar...
Dona
Dalmeci Honorato, de 48 anos, conhecida como Dalma, cozinha desde 11 anos de
idade. Ela mora na gleba de Cambucá, onde residem quase 160 pessoas. Com a
sabedoria daqueles que aprenderam a ler a vida por meio da observação, ela e o
marido, Seu Paulo, abriram as portas da residência para mostrar algumas
praticas culinárias que aprenderam.
O
talento de Dona Dalma na cozinha tornou-se um diferencial, inclusive em sua
profissão. Hoje, apesar de não trabalhar mais fora de casa. Dalma relembra o
momento que sua habilidade se destacou:
- Até,no Rio de Janeiro, a
minha patroa não comida à própria comida dentro da casa dela. Só que a Irma dela
cozinhava, depois que eu passei a cozinhar é que ela passou a comer em casa,
jantar e almoçar, ela, o esposo e o filho... E gostava muito, graças a Deus, da
minha comida.
Igualmente
ao milho, o mamão, disponível no terreiro de casa, aparece nas receitas,
conforme Dona Dalmeci explica:
- É bem mais fácil, né? Porque
o mamão, a gente já colhe ele, né? Já planta o mamão; dele, a gente tira aquele
fruta e faz as receitas. Até mesmo ensopado de mamão a gente faz, faz o doce
também do mamão maduro.
Além
disso, ela confirma a necessidade de cultivar a terra como forma de manter as
praticas culinárias:
- No momento, eu estou até
terminando de limpar ali para fazer outra plantação, porque termina aquela
colheita já tem que fazer outra plantação depois. Nem sempre, né, tem gente
incentivando... Isso ai é uma coisa que a gente sempre tem na cozinha [...]
Nesse
sentido, Seu Paulo Honorato, de 53 anos, reafirma a importância da permanência,
dentro das comunidades, da cultura da farinha, da banana e do coco, haja vista
que grande parte do que se come vem da terra. Como exemplo, destacam-se o
cantão de banana, o biju, a tapioca e o polvilho. Por conseguinte, como
liderança do quilombo, um de seus desejos também é retornar ao uso de ervas
medicinais: erva doce, erva cidreira, hortelã, entre outras.
Com
a habilidade de tornar melhor aquilo que toca com o olhar, Dona Dalma preparou
as receitas de canjiquinha com carne ralada e de ensopadinho de mamão com carne
seca, oferecendo cocada como sobremesa. Com efeito, ela diz:
- Tudo que se faz com
carinho as pessoas sempre vão gostar.
Canjiquinha
com Carne Ralada
Ingredientes
500g de canjiquinha
Alho
Cebola
Carne moída
Cebolinha
Tomate
Pimentão
Colorau
Colorau
Modo de preparo:
Preparar
a carne moída com os ingredientes, começando pela cebola em pouco óleo, para
dourar. Refogar a carne moída e depois os ingredientes (tomate, pimentão,
colorau e por ultimo a cebolinha), deixando a carne mais sequinha, sem muito
caldo. Refogar a canjiquinha com alho, cebola e cozinhar, adicionando água, de
10 a 20 minutos. Em um tabuleiro, fazer camadas da canjiquinha e da carne
moída.
Cozinheira:
Dalmeci Martins Xavier Honorato.
Quilombo do Batatal
Campos dos Goytacazes, Região Fluminense
A
gente tinha a comida vinda da lavoura...
Na cozinha do pólo da Fundação Municipal Zumbi dos
Palmares, destinado as comunidades do Imabé, Dona Berenice, de 54 anos, mas
conhecida como Bidi, preparou a receita do ensopado de carne de porco com
inhame e falou a respeito de suas experiências, como referencia temporal de
partida, Dona Bidi utilizou o período da constituição do Assentamento Novo
Horizonte: Ai, eu passei uma vida assim muito sacrificada. Meu esposo foi
operado de coluna, tudo o que fazia não dava, né? Mas, ai, eu gostava de usar
as coisas que eram mais fáceis para mim, Eu procurava pescar, fazer um
ensopadinho de banana, um peixinho frito, ensopadinho de inhame rosa pra comer
com aqueles peixinhos maiores [...] Minha comida era essa na época que passei a
crise. Na época que eu vim para a reforma agrária [Assentamento Novo
Horizonte], eu comia arroz de novo, que eu plantei com meu esposo, a gente
colheu...
Sobre os ingredientes utilizados na
receita do ensopado de carne de porco com inhame, Dona Berenice explica:
- Bom, a
historia que eu tenho é a seguinte... É que na época, a minha mãe e meu pai
gostavam muito da lavoura, faziam muita lavoura, e ele tinha muita quantidade
de inhame plantada, né? Não tinha escolha, qualquer tipo de inhame plantada, né?
Não tinha escolha, qualquer tipo de inhame ele plantava na terra, como a gente
fazia lavoura, não era difícil criar um porco [...] Era tudo fácil, porque
aquelas coisas que a gente plantava serviam pra. Era tudo fácil, porque aquelas
coisas que a gente plantava serviam pra alimentar a gente e servia também pra
tratar os porcos. Ai, a gente tinha a comida vinda da lavoura e tinha a carne
que era do porco. Ai, era mas fácil para nós. Então, minha mãe gostava sempre
de fazer ensopadinho, ela [a carne de porco] fritinha, assadinha no forno de
lenha, tudo isso.
Ensopado de carne de Porco com Inhame
Ingredientes
2 kg de costelinha
fresca
2 cebolas
2 cabeças de alho
2,5kg de inhame
Alho a gosto
Alfavaca a gosto
Modo de preparo
O lombo deve ficar de molho durante 15 minutes na água com vinagre.
Escorrer a água e cozinhar por 15 a 20 minutos na panela ate dourar, fritar na
cebola e nos alhos picados. Cozinhar o inhame na panela de pressão por 15
minutos, ou ate desmanchar, e adicionar a carne.
Quilombo Conceição do Imbé
Campos dos Goytacazes, Região
Fluminense
Vem de geração em geração
A culinária é uma arte que precisa ser realizada
com jubilo! Essa dica infalível da mãe da minha filha, Vanilda, com 57 anos, e Verônica,
com 37 anos, expressam quando constroem novos sentidos para alimentos que, no
passado, eram consumidos pelas pessoas da comunidade do Imbé.
Assim, de uma época em que nem sempre a realidade
era festiva, trazem a tona recordações de algumas receitas, como, por exemplo,
pelanca de velho, bolinho de farinha, água e sal; cantão de banana. Sobre a
primeiro prata, Verônica destaca: Meu filho gosta tanto de pelanca de velho que
ele escondeu debaixo do colchão.
Entretanto,
no tange ao quesito ressignificacao, a banana é a grande estrela. Tomando as
rédeas da narrativa em suas mãos, Verônica conta: A historia que eu lembro, que
o pessoal conta [...] que quando a usina faliu
e pessoal ficou desempregado, a banana era o prato principal. Banana
cozida de manha, porque ai fazia a paçoca. Pegava a banana, cozinhava, botava
farinha e açúcar, era o café da manha [...] na hora do almoço, era o cantão, e,
na janta, o cantão de novo, porque não tinha outra coisa.
Por
vezes, conforme Verônica fala risonhamente, conseguir a banana demandava alguns
peripécias: - No alto dessa serra, ali tem um lugar que tinha muita banana, só que lá
o acesso lá é terrível, a estrada é esburacada mesmo. Pra você ir lá, só a
cavalo. A minha tia foi, botou um de um lado e outro do outro e foi buscar banana, porque as crianças estavam
todas com fome, passando necessidade. Ela e uma outra tia minha. Só que as duas
não eram magrinhas eram fortezinhas. Foram no cavalo. O cavalo não estava
agüentando as duas mais, abria as pernas, tentava deitar, cansado, suado. E as
duas em cima do cavalo porque a altura é muito grande. Quando chegaram lá,
encheram o cesto de banana e desceram as duas do cavalo. Daí, o cavalo não
agüentou não, abriu as pernas e teve que deitar, porque não agüentou o peso.
Pior que o cavalo não era delas, era do campeiro, e era um cavalo de raça. E as
duas trepadas no cavalo, quase matando o cavalo. Elas desceram, ficaram batendo
no cavalo para ele levantar. Foi quando veio um rapaz e falou: Oh, vou dar uma
catucada, porque se não levantar agora, não levanta mais! Ai cutucou o cavalo,
que saiu da carreira e as duas saíram correndo atrás. Quase mataram o cavalo
por causa de pegar banana pra fazer a comida. [riso]. Gente, que coisa triste
isso ai, hein?... Ai, essa foi a historia das minhas tias.
Além
disso, essa receita passa de geração para geração, conforme explica Dona
Vanilda: - Vem de geração em geração. Só
que na época o pessoal comia por necessidade, hoje não. É um prato que todo
mundo gosta. É totalmente diferente, hoje ninguém usa mais por necessidade, é
porque gosta. Vê uma banana verde e faz o ensopado. Hoje, é totalmente
diferente.
Cantão
Ingredientes
1 kg de carne seca
2 dúzias de banana nanica ou banana figo verde
Cebola a gosto
Alho a gosto
Cheiro verde a gosto
Modo de
preparo
Dessalgar a carne seca fervendo-a cada fervura.
Descascar a banana com faca, picar em cubos pequenos e colocar de molho em água fria. Picar e socar a cebola junto
com o alho, refogar em três colheres de sopa de óleo, deixar dourar e
acrescentar a carne seca. Deixar cozinhar ate ficar bem macia. Reservar em
outro recipiente.
Na panela que foi refogada e cozida a carne,
cozinhar também a banana, cobrindo-a com o caldo dessa carne ate que a banana
se desmanche. Deixar ferver e engrossar.
Servir com a carne e o arroz branco.
Referência:
A Cozinha dos
Quilombos Sabores, territórios e memórias, Instituto Dagaz. Grafica Ediouro, Rio de Janeiro: 2015.
Galinhada Caipira com Guandu
Ingredientes
3 kg filé de peito de
frango sem osso
4 tabletes de caldo de
carne
1 limão para suco
2 colheres (sopa) de
azeite
1 cebola média ralada
1 kg de feijão guandu previamente
cozido (ao dente).
2 colheres (sopa) de
extrato de tomate
1 pimentão verde cortado
em cubos
1 colher (sopa) de salsa
e cebolinha picada
600 ml de água mineral.
1 cabeça de alho.
Modo de preparo
Corte o peito de frango em tiras ou cubos, tempere-os com dois tabletes
de caldo de carne e o suco de limão e deixe tomar gosto.
Em uma panela grande, aqueça o azeite, doure os pedaços de frango,
adicione a cebola e deixe refogar ligeiramente. Junte o feijão guandu, o
extrato de tomate, o pimentão, o caldo de carne restante e água mineral,
mexendo sempre.
Tampe a panela, assim que iniciar a fervura, abaixe o fogo e cozinhe por
cerca de 20 minutos, até que a o feijão fique macio e soltinho. Se necessário,
pingue mais água. Retire do fogo e passe para uma travessa. Polvilhe a salsa e
a cebolinha e sirva a seguir.
Fonte: Samba em Primeiro
Lugar - 6ª Edição, ANO I - 6ª Edição , Novembro|2015 - A primeira revista de
samba de Campos dos Goytacazes/RJ.
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