EFEITOS DO ÁLCOOL NA DIREÇÃO



Por Gustavo Meirelles
Diretor da Divisão Médica do DETRAN/RJ


O assunto é trânsito, mas vou começar falando de avião. Imaginem se, esse mês, tivesse caído no Rio um avião como aquele que caiu há meses, da Air France, no Oceano Atlântico. Aquilo causou uma grande comoção, não é? Pois suponham que, em dezembro, caísse outro desses aqui no Rio. E em janeiro, mais um. Quantos meses ocorrendo isso direto seriam necessários para que a população do Rio se desesperasse, parasse de andar de avião e começasse a exigir medidas enérgicas de controle disso? Pois se até hoje se fala naquele acidente com avião no aeroporto de Congonhas que, há mais de um ano, saiu da pista e explodiu!

Vejam só: até o ano passado, o trânsito terrestre no estado do Rio matava, por mês, o mesmo número de passageiros e tripulantes de um jato comercial. Então não se tinha que fazer nada contra isso? Só ficamos indignados com acidentes aéreos e não com os terrestres – ainda que ambos tenham o mesmo resultado trágico? Vamos continuar tratando os acidentes de trânsito como simples fatalidades? Aos médicos e psicólogos do DETRAN-RJ compete analisar o perfil dos motoristas, e aprimorar o seu comportamento. O que se espera quando estamos dirigindo um carro e olhamos para os veículos à nossa volta? Espera-se que os que estão dirigindo os outros carros estejam atentos ao volante, sem sono e que não estejam sob uso de remédios dopantes e nem de bebidas alcoólicas - porque se não for assim, no trânsito estaremos em constante risco. Isto serve também para os motoristas de ônibus, para os taxistas, para os caminhoneiros, para os que dirigem carretas, para os ciclistas, motociclistas e até para os pedestres. Na via pública, só uma pessoa alterada já é o bastante para causar um acidente de proporções incalculáveis.

Falamos sobre os pedestres, que nos parecem sempre vítimas - mas uma recente pesquisa feita em quatro capitais brasileiras revelou que mais da metade das pessoas atropeladas no ano passado estavam alcoolizadas. Será que o pedestre é mesmo sempre a vítima? Os cuidados na via pública servem para qualquer um, motorizado ou não. A Organização Mundial de Saúde vai mais longe: segundo ela, metade das mortes de jovens, em todo mundo, são atribuídas ao consumo de álcool.

Então, mesmo antes de olharmos para os motoristas, nossa busca já começa a encontrar indícios onde o DETRAN-RJ pode e deve atuar: os jovens e o álcool.

Imaginem uma máquina onde são colocados produtos diversos, e a máquina seleciona o que vai passar direto, o que vai demorar mais para passar, o que vai passar pouco e o que não vai passar - como se fosse um porteiro de boate, em relação às pessoas na fila. O fígado faz essa atividade no nosso corpo. Tudo que engolimos acaba passando por ele, e esse órgão determina o que vai chegar aos poucos na circulação sanguínea, o que chega mais rápido e o que não vai chegar. Pois vejam, quanto às bebidas alcoólicas após trinta minutos da ingestão praticamente todo o álcool engolido já está no sangue. E qual o problema de estar no sangue? O problema é quando ele chega ao cérebro.

No cérebro existe outra barreira aos produtos que lá chegam pelo sangue, chamada de barreira hemato-encefálica. Esta barreira é tão importante e sofisticada que chega a impedir alguns antibióticos de alcançar o cérebro, por isso é preciso conhecê-la para se tratar as meningites, por exemplo - o antibiótico pode ser muito bom para vários tipos de infecções pelo corpo afora, mas se ele não passa pela barreira hemato-encefálica ele não serve para tratar meningite. E quanto ao álcool? Vejam só: logo após a sua ingestão, a concentração de álcool no cérebro já quase se iguala à concentração sanguínea.

Nosso corpo é, portanto, uma autêntica esponja, quando o assunto é álcool. Sua absorção é tanta e tão rápida quanto à de glicose, o açúcar do nosso dia-a-dia. Na verdade, existe até uma competição no fígado e no cérebro entre os dois, álcool e açúcar, e a "preferência metabólica" (digamos assim) recai sobre o álcool. Por isso, quanto mais bebida alcoólica consumimos, mais a taxa de glicose cai no nosso sangue, de modo que o alcoolizado sofre não só os efeitos danosos do álcool no cérebro, mas também os sintomas de hipoglicemia, juntos. Considerando que o cérebro se “alimenta” praticamente só de glicose e oxigênio, fecha-se o círculo: o álcool altera diretamente o cérebro e também indiretamente, ao causar hipoglicemia.

E quais os efeitos do álcool no cérebro? Ao passar pelos labirintos (direito e esquerdo) e pelo cerebelo, ele altera de imediato o equilíbrio e a coordenação, e ao chegar aos tecidos cerebrais superiores (os lobos), a atenção e a vigilância. Busca-se portanto no álcool um relaxamento e uma alegria decorrente dessa despreocupação, o que chamamos hoje de “liberação” - algo que os mais estressados e tímidos desejam, nas festas. Porém, se sabemos que dirigir exige exatamente o oposto - atenção, concentração, vigilância permanente, reflexos e respostas rápidas -, então concluímos que o álcool gera o contrário de tudo o que se deseja ver num motorista.

Quem vai mais à festas? Quem busca mais liberação? Quem é mais impulsivo? Os jovens, naturalmente. Não por acaso, em algumas estatísticas eles respondem por mais de 70% dos acidentes automobilísticos com vítimas fatais. No trânsito, fornecemos a primeira carteira de habilitação a partir da maior idade - que hoje está em 18 anos. Os exames médicos e psicológicos são dotados de rigor especial nestes casos, e a carteira é fornecida com um prazo menor de validade e punições mais severas, em seu primeiro ano - mas é preciso que todos, pais, professores, instrutores e autoridades colaborem na conscientização destes primeiro habilitados, desviando para longe da via pública a impulsividade natural da juventude.

Se mesmo tendo sido instruídos não recebermos punição pelos nossos erros, a tendência é errarmos cada vez mais. Neste ponto, a chamada Lei Seca tem papel fundamental. Ela não é uma lei do DETRAN-RJ, é uma lei federal (de número 11.705), mas tem sido particularmente bem implantada aqui no nosso estado, onde o DETRAN-RJ financia as suas ações. A dose permitida de álcool no bafômetro já foi de 0,6 gramas por litro de sangue (o equivalente a três latas de cerveja), mas isso se mostrou ineficaz, então há um ano este limite baixou para irrisórios 0,2 gramas - que é a margem de erro do próprio bafômetro. Não se iludam: dois bombons com licor positivam o bafômetro, e o uso de antisséptico bucal também - mas nesse caso o condutor pode pedir para repetir o exame em vinte minutos, e assim o resultado será negativo.

As pessoas argumentam que a dose de álcool de apenas uma lata de cerveja ou de uma ou duas taças de vinho não é suficiente para alterar os reflexos de um motorista, mas a pesquisa médica mundial provou que não é bem assim: na verdade não existem níveis seguros para o consumo de álcool - e, além disso, como em todo consumo agradável a tendência é não se ficar na baixa dose. O dado mais importante é que esse buscado "nível seguro" varia de pessoa para pessoa, de acordo com o seu peso corporal, com a sua frequência em beber e com a sua resistência pessoal, portanto não seria possível estabelecer esse limite dentro de uma Lei - e essa Lei é necessária, pois o álcool está tirando vidas no trânsito. 0,2 gramas já causa retenção da carteira e multa, e 0,6 gera prisão em flagrante (pena de seis meses a três anos, afiançável).


Neste momento já passou na Câmara e vai para o Senado um aditivo desta Lei que permitirá aos agentes de trânsito prenderem o motorista que considerarem alcoolizado mesmo que ele se recuse a usar o bafômetro. Em alguns estados americanos já é assim, e isso tem reduzido acidentes e vítimas por lá. Na verdade, estamos ainda quase quatro vezes atrás dos países ditos do Primeiro Mundo, em termos de mortes no trânsito. Lá, o trânsito mata cinco pessoas em cada cem mil habitantes, enquanto no Brasil este número chega à dezenove - mas também há países que alcançam 50 mortes em cem mil. A Lei Seca tampouco é exclusividade nossa: ela hoje é praticada por 92 países, e o Brasil está entre os vinte onde os termos dela são mais rigorosos. Estônia, Polônia, Noruega, Mongólia e Suécia têm leis sobre álcool no trânsito com o mesmo rigor que nós – e na América do Sul, apenas a Colômbia nos supera na rigidez da Lei Seca (o limite lá é zero).

O tempo ideal entre beber e dirigir também é relativo, varia de pessoa para pessoa e de bebida para bebida. Cerveja e vinho costumam ser eliminados do organismo em seis horas, mas uísque e aguardentes levam mais tempo, porém dormir acelera essa eliminação, portanto o efeito de uma lata de cerveja para quem passou a noite em claro é triplicado - o que explica os acidentes graves em alta madrugada ou já de manhã, além da inevitável sonolência do condutor que não dormiu. A popular ressaca matinal, da qual se queixam mesmo aqueles que não exageraram na bebida na véspera, mostra que os efeitos do álcool podem se alongar no organismo até o dia seguinte - e não é raro ouvirmos de pessoas no sábado à noite: "hoje não vou beber, pois já bebi ontem à noite", o que revela que o tempo ótimo de se pegar no volante após beber deve mesmo ser de 24 horas ou mais.

Quem se lembra? Claudinho (da dupla com Bochecha), João Paulo (da dupla com Daniel), a ginasta Georgette Vidor, o locutor Osmar Santos, a cantora Maysa e o ator e cantor Flávio Silvino (filho do humorista Paulo Silvino) são algumas das vitimas mais famosas do trânsito. Se pararmos para pensar, todos aqui nos lembraremos de algum parente, amigo ou conhecido vitimado pelo trânsito - falecido, sequelado ou que escapou por milagre. Esta é a dimensão do problema: ele atinge a todos nós. Por isso, convocamos a todos a apoiar a missão do DETRAN-RJ, que não é multar ou prender, e sim salvar vidas - com foco nos jovens, que tendem mais a dirigir de forma irresponsável.


Motoristas vermelhos de raiva não costumam ligar para a cor do sinal, apaixonados mais ousados desafivelam o cinto e alguns solitários chegam até à curtir um som de olhos fechados – todos esses andam na contra-mão da vida. Com nossas ações, tentamos evitar que a sensação de liberdade que eles buscam ao volante não os levem ao aprisionamento no interior dos destroços retorcidos de um veículo. Queremos que a vida deles seja sempre um deslizar suave - mas não sobre as rodas de uma cadeira.


Fonte: DETRAN-RJ

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