O caminho da Valorização do Indivíduo. Um Conto!

O blogueiro, ainda aproveitando o recesso, está se atualizando, livros, revistas, jornais, cinema, dvds, cds e mil uma coisa passaram a fazer parte do seu cotidiano! E tive o privilégio de encontrar na estante do quarto, o Livro: “Caminhos”, uma Coletânea de trabalhos vencedores do 1o Concurso Literário Eletronuclear, composto por crônicas, contos e poesias, que acabou por se tornar um marco, iniciando uma nova forma de interação entre seus colaboradores no espaço da própria empresa, reconhecendo a importância do idioma escrito e do incentivo à criatividade como fonte geradora de motivação,ciente de que os saberes individuais ultrapassam as fronteiras do conhecimento tecnológico. Compartilho o Conto a Van, de José Manuel Dias Francisco, muito rico e se assemelha com minha ida para o trabalho! Boa leitura e quem chegar até o fim, sinta-se um presenteado.
A Van
Seis horas e vinte minutos. Ando calmo e pego a van.
Recém-chegado, depois de viver oito anos em Viena, me instalo provisoriamente em Campo Grande, subúrbio do Rio de Janeiro, e ou diariamente trabalhar no Centro do Rio. Se o trem fosse bom, levaria quarenta e cinco minutos. Se a Avenida Brasil fosse decente, uma hora. Mas a Linha Vermelha – uma importante via que influencia o tráfego da cidade – entortou porque a favela que se estendeu por baixo dela pegou fogo e a Avenida Brasil virou o caos. Duas horas, no mínimo, é a duração da viagem até o Centro pela avenida, e eu escolhi trabalhar de van. Ar condicionado, gente quieta e sentada, carro grande – não pego Kombi ou aquelas imitações pequenas de van.
Com Viena na cabeça, pego a van em Campo Grande e vou trabalhar. Sento. Ainda existem alguns lugares vagos. A van percorre alguns subúrbios antes de pegar a Avenida Brasil. Calmos, alguns até já dormem. Eu, atento. Estou me reaculturando. Brasil. Subúrbios. Vida borbulhando! O que dá sono aos outros me excitava!
Em Senador Camará, vejo no ponto do ônibus à frente da van duas mulheres enormes – para todos os lados – que fazem sinal. Meço visualmente as suas ancas, aparentemente a maior dimensão horizontal das donas, e encaixo-as nos dois últimos assentos livres, um ao meu lado e outro quase em frente: não cabem. Impossível. O motorista desacelera e pára. Eu, só eu. Elas entram, e sem cerimônia encaixam-se nos lugares. Os que não haviam juntado suas coisas são juntados. Eu, mesmo tendo sido precavido, também sou juntado no que resta juntar. Só eu noto. Só eu tinha chegado de Viena. Só eu senti aquele juntar natural: tem lugar, senta! Estava embevecido com o retorno à brasilidade. Sentia, via, escutava e cheirava tudo!
Percebo na dona negra à minha frente uma grande doçura de mãe, de quem viveu de tudo.
Sorriso tatuado na boca, dentes brancos. Ao meu lado, a mais nova, lá pelos seus quarenta e tantos anos, cara de filha, ainda aborrecida com os revezes da vida, batalhadora, desbravadora, não deixando para depois o que podia ser dito na hora. E não levaria desaforo para casa!
Entre a doçura à frente e o risco ao lado, decido ficar quieto. Até não precisaria me preocupar com essa decisão, pois elas falam por todos. Os outros dormem ou as ignoram. Elas falam muito, algumas das coisas que passam lá fora, e muito das vidas delas mesmas. E tudo o que elas fazem e dizem entra, sem pedir, por todas as minhas antenas.
Depois de ouvir algumas conversas entre elas, já entendo tudo. A minha primeira impressão havia sido certeira: mãe e filha, doce e risco. E parece que não se viam fazia algum tempo.
Passamos sob uma passarela antes de o motorista fazer mais um desvio por dentro de Parada de Lucas, pois a Avenida Brasil está insuportável. A filha aponta para a passarela e diz:
- Lembra, mãe, dessa passarela?
- Claro, filha. Não sei como você não caiu.
- Mãe, eu tava porrada, de quatro. Como eu ia cair?
E a mãe calejada da vida, acolheu:
- É filha.
A filha engatou:
-Mãe, lembra que a senhora me chamava de mulher-homem?
Eu tento não expressar meu êxtase em escutar aquilo. Minha mascara tem que ser perfeita, ou corro o risco de receber um afago da mãe ou uma porrada da filha, e eu, não saberia como reagir, recém-chegado de Viena.
- Lembra, mãe?
- Sei, filha. Mas aquilo é modo de dizer.
- Pois é, mas imagina eu escutando isso a vida inteira. E olha aqui, eu não era mulher-homem não. Eu sempre gostei de homem. O que não gosto é de levar desaforo pra casa.
- Eu sei, minha filha, eu sei.
Eu não sei de todos vestem mascara ou se só eu faço um esforço sobre-humano para não demonstrar meu regozijo por estar vivenciando aquilo.
Olho pela janela e vejo a van dobrando da Avenida Presidente Vargas para a Rio Branco. Oito horas e quarenta e cinco minutos. Eu tenho que saltar. Como? Como poderei eu deixar ambiente tão rico? Eu estou anos mais experiente graças a elas! Não, não. Mas tenho que saltar. Quero beijar a senhora, e apertar a mão da vizinha. Não, isso não se faz numa van.
Que dizer? Peço ao motorista para parar. Levanto-me e viro-me na direção da porta. A vizinha já ficou para trás. Resta a rechonchuda mãe, ainda ao meu alcance. Tenso, toco levemente a coxa da dona com minha mão e digo, sério:
- Poucas vezes vi uma pessoa tão doce e rica como a senhora.
A porta se abre, e eu salto surdo e cego, pois meus sentidos ficaram para trás, ainda estão na van.
Recupero-me, mas meus sentidos não me revelam o que as donas disseram de mim lá dentro.

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